No Intenso Agora.




Escrevo este texto sentado pela primeira vez em nosso novo ateliê. Trata-se de uma casa antiga no centro de São João do Pau d'Alho, minúscula cidade do extremo oeste paulista. Enquanto digito, o sol de 35 graus irradia sobre as ruas largas de asfalto e sobre os muros de cimento das casinhas ao redor. A casa é antiga e as janelas de ferro rangem ao serem abertas. A porta dos fundos, na cozinha, é de madeira e dá para um quintal onde araras canindé fazem algazarra no fim da tarde. Debaixo dos pés de pitanga, caqui, mandioca e jabuticaba, uma galinha cisca pela terra.

Preso na janela à minha frente por um ímã, está um cartão postal com a reprodução de uma pintura de Cy Twombly chamada Wilder Shores of Love, uma das minhas favoritas do artista. Trata-se de uma espécie de paisagem abstrata, na qual marcas de tinta a óleo e pastel, vermelho e verde acinzentado e feitas com a mão, formam uma mancha sobre uma parede branca. Na parte superior da pintura, derretendo com o calor ou lavado pela água do mar,  o verso que dá nome à obra está escrito com a letra cursiva que é caraterística do pintor.

Hoje, no feriado católico de Sexta-feira da Paixão, não existe movimento nas ruas, que estão um pouco mais vazias do que a média habitual desde o ano passado. Por aqui, o movimento sempre foi escasso, mas desde o começo da pandemia a cidade alarga os limites e acentua as suas ondas vagas. Uma poeira de terra vermelha tinge a atmosfera e o cheiro de agrotóxico vindo de alguma plantação de cana de açúcar na vizinhança paira pelo ar. A paisagem, calma e silenciosa, disfarça um pano de fundo histórico em que tragédias - sociais, econômicas, ambientais - se acumulam umas sobre as outras como resultado do governo Bolsonaro.


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Não sei de onde vem a frase “Wilder Shores of Love”, mas conhecendo o modus operandi de Twombly, que gosta de se apropriar de versos de poemas, a palavra shore me faz querer acreditar que seja algum poema grego traduzido por Giorgos Seferis, um favorito do pintor. Cy Twombly faz o uso da citação de poemas em sua pintura, mas muitas vezes é traído pela sua memória que modifica os versos ligeiramente, tornando-os distintos de sua versão original. Assim, seus poemas, mesmo que escritos por outros, vão se tornando algo muito único, próprio, numa espécie de tradução, que requer um desvio do texto original na medida em que encontra novas direções e adentra terrenos desconhecidos. Walter Benjamin, que muito escreveu sobre a tarefa do tradutor, diria: na continuação de sua vida, o original se modifica.


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Na abertura do filme No Intenso Agora, de João Moreira Salles, assistimos a imagens em branco e preto de pessoas sentadas em volta de uma mesa, bebendo largos copos de cerveja, ou dançando de mãos dadas nas ruas. Após algumas imagens em silêncio, a voz em off do diretor narra:

"Essas são imagens de um filme amador, na Tchecoslováquia de 1968. Não conheço essas pessoas. O que sei sobre elas é o que as imagens mostram. Sei que elas estão felizes e imagino que quem filma também está (…) é verão na Tchecoslováquia de 1968 e as pessoas estão felizes.”

Essa introdução dá o tom para o filme de Moreira Salles, que usa imagens de arquivo para criar uma interpretação nova, pessoal e que se confunde com a autobiográfica, sobre a euforia das transformações sociais de 1968 ao redor do mundo. As linhas narrativas do filme, todas acerca de momentos de revolução histórica, são focadas numa espécie de intensidade emocional: a euforia de sua mãe, que viaja numa missão cultural para a China de Mao em 1966 e fica deslumbrada com a beleza do país, como se o visse com olhos de turista ao invés de diplomata; a energia dos estudantes da Sorbonne em Paris em 1968, que ocupam o protagonismo de uma revolução ainda sem rumos definidos; e a emergência da Tchecoslováquia sob a invasão Russa, no qual cinegrafistas amadores sentem o impulso de filmar as ruas escondidos atrás das cortinas de suas casas. Todas elas estão também refratadas por imagens do Brasil após o golpe militar de 1964.

A associação entre tais momentos, no entanto, não segue uma linha de causa e efeito, mas parece ter mais a ver com um estado de espírito: a felicidade diante de um momento histórico de efervescência cultural, que se apaga com o passar dos anos.


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O filme, feito em 2016, parece acenar, sem assumi-lo, para as revoltas de 2013 no Brasil, que sofreram uma desproporcional reação da polícia militar e tiveram suas pautas rapidamente cooptadas pela extrema direita – o que, de maneira muito tortuosa, resultou no país embrutecido e ressecado de hoje.

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Espalhados pelas paredes do nosso novo ateliê sobrevivem rabiscos, desenhos e palavras escritos pelos seus antigos habitantes. São diferentes tipos de registro. Nomes próprios e ordens numéricas próximos ao batente da porta parecem ser feitos por algum adulto que, desprovido de um pedaço de papel, fez anotações para não se esquecer depois. Outros, na altura dos joelhos, são movimentos em espiral e manchas gordas de tinta vermelha, que sugerem uma criança que descobre uma expressividade primordial, lambuzando as mãos com tinta. Pelo rodapé, algumas figuras humanas desenhadas com grafite são feitas apenas de um círculo no lugar da cabeça e palitos compridos no lugar dos braços e das pernas: a provável visão de uma criança que, ao olhar para cima, enxerga os adultos dessa maneira. Todas as inscrições são ecos de outros tempos, de outras vidas passadas que informam e sugerem, sem contar com exatidão, a história daqueles que um dia passaram por aqui.


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A pintura de Cy Twombly à minha frente, impressa no cartão postal, não por acaso se assemelha a uma parede branca - o artista usa tinta industrial de parede como fundo de suas telas - coberta com manchas vermelhas de óleo feitas com a mão. Um gesto chama a atenção: Twombly pinta por cima do que estava lá anteriormente, resultando numa mancha borrada, e assim, ao mesmo tempo em que apaga, acaba por imprimir uma nova leitura.

A paisagem abstrata, somada ao verso “Wilder Shores of Love”, que vem sabe-se lá de qual fonte, evoca o funcionamento da memória, sempre se reconfigurando e sugerindo acontecimentos sem revelá-los por completo. Assim, Twombly permite ao leitor projetar significado nas lacunas e nos vãos do seu trabalho: o traço visível do artista, tendo estado em algum lugar ou experienciado alguma coisa, formula um convite para adentrar espaços privados da sua memória.


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Lilia Schwarcz, no texto Bolsonaro e seu reino: retóricas visuais do poder, analisa o fetiche patético do governo em emular imagens de propaganda de regimes nazi-fascistas. O ato de recriar imagens do passado, ela argumenta, constitui uma espécie de “eficácia política do poder simbólico”.

As imagens, ela diz,

“se encontram entranhadas na lógica do poder e cumprem um papel central: enfatizam e direcionam mensagens, emocionam, irmanam. Símbolos se inscrevem nos textos escritos, mas estão presentes, também, em complexas retóricas visuais. As cores de uma bandeira devidamente manipuladas, insígnias dispostas em locais destacados, instrumentos e adereços bem selecionados, fotografias tomadas de pontos de vista estratégicos: imagens têm a capacidade de mexer com o afeto e com as noções de pertencimento pátrio.

(...)

No início do século 20, o antropólogo Franz Boas explicou que ‘o olho que vê é órgão da tradição’. Mostrou, assim, como não nos é dada a faculdade de ‘ver’ livremente: carregamos os filtros do nosso presente e do contexto social e, sobretudo, informações visuais que atravessam o tempo, advindas do passado.

Por isso, muitas vezes, símbolos funcionam por relação e associação (a famosa sensação de déjà vu talvez não seja mais do que uma forma de lembrança visual que insiste em retornar e produzir significado). É por isso, também, que enxergar não é igual a ver. Enxergar é uma capacidade biológica, enquanto ver implica uma forma de seleção cultural. É dessa construção histórica que se alimenta a retórica visual do poder. Ela é feita de pedaços de associação, de imagens por vezes arquetípicas que ressoam outros tempos, mas têm a imensa capacidade de produzir sentido no presente”.


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No Intenso Agora é um filme feito em 2016, no qual João Moreira Salles analisa imagens das revoluções de 1968. O contexto do diretor, deslocado historicamente dos acontecimentos que observa, permite considerá-los sob um novo ângulo. Ao mesmo tempo, sua memória pessoal - sua família morava em Paris na época dos protestos e, ao longo do filme, suas imagens de arquivo se confundem com outras de fontes anônimas - é reformulada.


Entre todas elas, uma imagem parece especialmente deslocada da narrativa, mas é muito elucidativa a respeito da proposta estética de Moreira Salles. Trata-se da imagem de três crianças e duas mulheres; uma delas, negra. Assim que a câmera foca no quadro familiar branco, a babá sai instintivamente do quadro e espera no canto da imagem. Ele diz: “[essas são] imagens de uma família que também não conheço. A câmera pensa que está registrando apenas os primeiros passos de uma criança. Sem querer, mostra também as relações de classe no país”.


Não por acaso, durante os protestos a favor do impeachment de Dilma Roussef, uma imagem semelhante se tornou o símbolo do momento: um déjà vu das tensões antigas e viciosas do Brasil que acarretaram no governo Bolsonaro.


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No ano de 1229, o monge Johan Myrones apagou o conteúdo de sete pergaminhos diferentes. Em seguida cortou todas as páginas pela metade, as girou em noventa graus e colou as bordas com cera. Sobre as folhas, dispostas numa ordem completamente aleatória, o monge escreveu o seu caderno de orações.


Seu livro sobreviveu aos séculos e, no ano de 1906, chegou às mãos de Johan Ludvig Heiberg. O intelectual o observou com uma lupa, perscrutando suas inscrições. Ali, debaixo das orações e perdido entre o conteúdo apagado dos outros pergaminhos, ele descobriu o Codex C do matemático Arquimedes.


O cientista William Noel, um dos responsáveis pelo resgate do palimpsesto, declarou que “tudo que sabemos sobre Arquimedes como matemático, sabemos graças a apenas três livros, chamados A, B e C. Um humanista italiano perdeu o A em 1564. A última vez que se soube de B, ele estava na Biblioteca do Papa a umas 100 milhas ao norte de Roma, em Viterbo em 1311. O códex C só foi descoberto em 1906”.


Tal processo de sobrevivência, de adaptação e transformação ao longo do tempo pode ser entendido como uma metáfora do caráter dialógico da história, ou, mais especificamente, da história da arte e de suas obras.


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Cy Twombly toma grande inspiração na poesia grega, escrevendo versos em suas telas que, deliberadamente ou não, acabam por se modificar. As traduções de Guy Davenport dos poemas da Idade do Bronze tardia na Grécia estavam entre as favoritas do pintor, sobretudo aquelas dedicadas ao poeta Arquíloco.


A obra de Arquíloco sobreviveu, em Alexandria, como tecido de embalsamamento. São fragmentos escritos em pedaços de papiro com os quais múmias foram embrulhadas e recheadas. Todo o resto está perdido. Assim como o palimpsesto de Arquimedes sobreviveu apenas porque se tornou um livro de orações, muito provavelmente, apenas por terem se tornado o invólucro funerário, os versos sobreviveram à passagem do tempo.


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No trabalho do poeta-tradutor Davenport, os andrajos do papel alexandrino se tornam parte da aura imaginária do poema, que evoca a sua materialidade esfarrapada:

ARCHILOCOS

[This shred
Of Alexandrian
Paper, torn
Left side, right side,
Top and bottom
With holes
In the middle,
Reads]

You[
     ] if [
river[
       ] so [
I then, alone]


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Em No Intenso Agora, João Moreira Salles fala sobre a imagem de Mao, reclinado em sua escrivaninha:

“O jovem Mao escreve e não se sabe o que. Num romance do norueguês Per Petterson, o personagem principal, um militante maoísta já perto da meia idade, especula sobre a fotografia de Mao que tinha no quarto quando era estudante e jovem. Ele conta:

‘a imagem de Mao era a famosa fotografia retocada na qual ele está inclinado sobre a mesa escrevendo com um desses pincéis chineses e sempre pensei, torcendo para estar certo, que o que ele escrevia não era um daqueles artigos políticos ou filosóficos, mas um dos poemas dele. Talvez o que começa assim:

como um vago sonho relembrado
penso em minha aldeia de então
eu amaldiçoo o rio do tempo.'”


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