Na Espiral do Tempo.
Em novembro de 2016 tive o privilégio de ir pela primeira vez a Paris. A viagem, ao lado de minha companheira Mariana, mais do que a oportunidade para finalmente conhecer a cidade, parecia a desculpa ideal para o reencontro com uma amiga querida. Ambas haviam morado juntas em São Paulo e, por coincidência, nós três acabamos nos mudando para outros países, a fim de cursar um mestrado, na mesma época. Desde que saímos do Brasil, nunca mais havíamos nos visto.
Naquela época, o Centre Georges Pompidou organizaria a mostra Cy Twombly, a maior retrospectiva da obra do artista até a data. Quis o destino que estivéssemos em Paris para a inauguração da exposição. Na verdade, por minha culpa, perdemos o horário do nosso vôo de volta para casa na véspera e, assim, tivemos que ficar na cidade algum tempo além do programado. As artimanhas do tempo concretizaram, afinal, a oportunidade de testemunhar a obra de um pintor que eu admirava há muito tempo.
Naquela ocasião, para os meus olhos inéditos de espectador, a cidade reluzia com um aspecto cenográfico. Sob a atmosfera diáfana do outono, a luz amarelada do sol, fraca, misturava-se ao ar frio, criando uma cidade imaginária, quase como se vista sob o vidro de uma campânula protetora. Essa névoa esbranquiçada, que se confunde com o próprio filtro da memória, acabei descobrindo mais tarde que, afinal, seria uma chave para desvendar o sentido daquela viagem para mim.
Paris parece possuir uma consciência estética, que se manifesta regendo o encadeamento de acontecimentos da cidade. O equilíbrio de um arranjo de abóboras numa feira de rua, o cheiro de manteiga que escapa das pâtisseries, o vapor que emana das bocas dos transeuntes quando caminham na contraluz, são elementos que, como forças invisíveis e simbióticas, emanam uma ideia de cultura. Hoje, a imagem de Paris que resiste em minha memória é algo indeterminado entre a nostalgia e a imaginação. No entanto, é justamente esse tipo de devaneio que circunscreve a minha experiência da cidade.
A atividade das ruas, alternativamente, revelava uma ruptura da ordem, uma fenda na redoma estética da cidade, pela qual era possível acessar um outro tipo de existência. Na cênica Paris de 2016, militares reunidos em grupos de quatro ou cinco, de rifles em punho, rondavam pelas esquinas, carregando consigo a tensão de uma Europa com cada vez mais dificuldade em manter uma aparente homogeneidade. Essa sensação de alerta era sintomática, e demonstrava que ainda estava viva a tensão reminiscente da série de atentados terroristas ocorrida menos de um ano antes, deflagrada, de acordo com a imprensa, pelo Estado Islâmico como uma retaliação para o papel da França na intervenção militar na Síria e no Iraque.
Entre eles, pessoas caminhavam até o metrô, formavam suas filas na hora do almoço e discutiam ao fumar um cigarro na esquina. A vida cotidiana acontece, os dias passam e se acumulam, e a banalidade das coisas impõe o seu andamento. Todavia, na história das cidades, a construção da ordem civilizatória acontece sobre as ruínas da anterior.
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Naquela nossa visita a Paris, nos hospedamos no 11º arrondissement. A pequenez do apartamento de apenas um cômodo era, apesar do aperto, aconchegante naqueles primeiros dias de inverno. De qualquer maneira, não passávamos muito tempo sob quatro paredes. Logo de manhã partíamos para a rua, o café era tomado nas redondezas e em seguida rumávamos em direção ao centro da cidade: o núcleo de um planejamento urbano que, se visto de cima, se alastra em formato de espiral.
Nosso caminho, feito de bicicleta, passava pela praça da Bastilha. O entroncamento de uma dezena de ruas ao redor da rotatória exigia de nós uma atenção redobrada, além de certa destreza para se impor no fluxo do trânsito.
A afluência da Bastilha faz lembrar, numa dimensão análoga, a própria circulação de pessoas, e, mais além, dos povos e culturas em qualquer cidade grande. A localidade, um marco geográfico do mundo ocidental, emana a coexistência do caos e da organização. Inicialmente concebida como um portal de entrada para o bairro de Saint-Antoine e posteriormente reformada e transformada em fortaleza, a Bastilha afinal converteu-se numa prisão no século dezoito, cuja queda se transformou no símbolo da Revolução Francesa. Hoje, uma rotunda, é o ponto de referência de um bairro nobre na região central da cidade. Sua importância sobrevive na essência, mas o seu papel se redimensiona de acordo com o contexto histórico.
De lá, uma linha mais ou menos reta leva ao 1º arrondissement, onde concentram-se alguns dos principais museus da cidade. O mais famoso deles, o Museu do Louvre, possui um acervo dedicado especialmente à arte antiga. Um pouco mais adiante situa-se o Museu de l’Orangerie, construído especialmente para receber os Nenúfares de Monet, mas que possui uma coleção permanente de arte moderna. Na mesma região, mas do outro lado do Sena, fica o Museu d’Orsay, que abarca a arte do século XIX. Alternativamente, uma curva à direita na metade deste mesmo trajeto, na altura da Rue Renard, leva até a Place Georges-Pompidou, onde fica o famoso museu de arte contemporânea de mesmo nome. São quatro curadorias distintas, dedicadas cada uma à sua época histórica, mas inevitavelmente ligadas entre si.
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Os museus são um palco simbólico desta encruzilhada civilizatória. Hoje, concentrados no debate decolonial, organizam-se ao redor desta narrativa. O tema repercute na configuração dos museus, fazendo com que estes revisitem o seu papel social enquanto instituições.
O questionamento principal se concentra na legitimidade do acervo de muitas coleções europeias, que se constituem de arte espoliada. Partindo dessa discussão, uma iniciativa de devolução de objetos para os países de origem está em movimento, com museus no continente abrindo pela primeira vez a oportunidade para esse diálogo.
A onda de repatriação de artefatos, que hoje abrange muitos países da Europa, foi desencadeada por um relatório encomendado em 2017 por Emmanuel Macron, presidente da França, no qual dois especialistas defendem a devolução ao continente africano de todas as obras e objetos que tenham chegado às coleções francesas de forma irregular. A questão é complexa e lida com uma amálgama de fatores que devem ser conjugados. Grosso modo, a prática registra opiniões divergentes: a parcela conservadora defende os rumos da história, apontando que é graças ao saqueamento que tais artefatos foram preservados até os dias de hoje e que, ademais, não é necessário que uma obra seja exposta ao público exclusivamente no seu contexto de origem para ser válida; uma perspectiva mais à esquerda, ao invés, aposta na atitude simbólica da devolução, que seria capaz de mitigar os débitos da colonização, reconhecendo a legitimidade dos seus países de origem.
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De todas as tentativas de definição do que é, afinal, o “contemporâneo”, talvez a mais famosa venha de Giorgio Agamben*. O filósofo italiano considera a intempestividade como uma característica fundamental daquele que vive sua época. Aquele que é efetivamente contemporâneo, ele dirá, é alguém que não coincide perfeitamente com seu tempo nem se adapta às suas exigências. É alguém que, através do seu distanciamento e do seu anacronismo, é capaz de perceber e captar o seu tempo melhor do que os outros.
A ideia de progresso - a noção de que o mundo anda em linha reta, evoluindo em direção ao futuro, numa relação de causas e consequências lineares - constituiu o moderno século XX. Já a capacidade de articular o desfasamento - essa relação singular com os anacronismos que configuram o tempo -, pode ser entendida como uma qualidade contemporânea.
Esse princípio marcou um momento de epifania para o crítico de arte Didi-Huberman**, professor da École de Hautes Études en Sciences Sociales em Paris, quando este se viu diante de uma pintura de Fra Angelico. A obra, que data de meados do ano de 1440, localizada no convento de São Marcos em Florença - de acordo com ele, um “painel de fresco vermelho, crivado de manchas erráticas” -, suscitou no intelectual a ideia de que “a história da arte está sempre por recomeçar” .
Isso porque tal painel parece produzir uma ruptura no tempo: remetendo a obras do expressionismo abstrato que viriam a ser reconhecidas na história da arte apenas na segunda metade do século XX, a obra “produz como que uma deflagração: um fogo-de-artifício colorido que carrega ainda o traço do seu jorrar originário”.
A semelhança, é claro, se trata de um pseudomorfismo: as relações de analogia entre o painel manchado de Fra Angelico e uma tela do expressionismo norte-americano não resistem muito tempo à análise por conta da diferença entre seus investimentos simbólicos. Um olhar mais atento também irá notar que a pintura de Fra Angelico possui, já dentro de si, diversas técnicas vindas de diferentes épocas da arte antiga. Todavia, tudo isso configura um sintoma, um fenômeno do anacronismo que reorganiza a percepção que temos do funcionamento da história da arte enquanto disciplina.
Nesse sentido, o filósofo vai afirmar que “diante da imagem, estamos sempre diante do tempo”. Isso porque diante de uma imagem, por muito antiga que seja, o presente nunca cessa de se reconfigurar e por muito recente que seja, também o passado nunca cessa de se reconfigurar. Uma imagem, e em especial uma pintura, é feita de sobredeterminações, ou seja, é construída do entroncamento de tempos e épocas distintas em si, e, assim, só se torna pensável “enquanto construção da memória”.
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Diante de Cy Twombly, eu tive a minha própria epifania, embora eu não queira, é claro, compará-la com aquela de Didi-Huberman. Seus painéis crivados de manchas erráticas demonstravam também a sua própria ruptura, uma espécie de viagem no tempo muito particular, como se murmurando fatos históricos prestes a serem esquecidos. Ali, diante de sua obra, apenas observei o silêncio de Twombly e me reconheci em sua introversão.
No dia da inauguração, nos colocamos na fila à espera da abertura do Pompidou. Eu e Mariana fomos dois dos primeiros visitantes a entrar no museu. O desejo era, é claro, aproveitar bem o nosso tempo disponível, além de evitar o risco de perder um segundo vôo de volta para casa.
Subimos a escada rolante à esquerda do átrio principal, e depois contornamos o edifício em direção ao túnel que leva ao andar de exposições para encontrar um salão ainda praticamente vazio. Mesmo que dispuséssemos de uma manhã e uma tarde inteiras, e estivéssemos vivenciando um raro momento de solitude no Pompidou, o escopo da retrospectiva era grande o suficiente para uma visita que nos faria perder a noção do tempo, já que se estendia por metade do segundo andar do museu.
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Edwin Parker Twombly nasceu nos Estados Unidos no ano de 1928. O artista herdou de seu pai – jogador profissional de baseball – a alcunha de Cy Twombly, inspirada pelo jogador Cyclone Young. Após adquirir sua formação artística no Museum School de Boston, na Art Students League de Nova Iorque, e no Black Mountain College da Carolina do Norte, o artista viajou para o norte da África, onde se apaixonou pela aura do clima mediterrâneo.
De volta aos Estados Unidos, em 1953, Twombly trabalhou para o serviço nacional do exército como criptógrafo, e desenvolveu – apesar de seu pouco interesse pela profissão – competências do âmbito da história, teoria e prática da criptografia antiga e moderna – estudando, por exemplo, a escrita estenográfica diariamente. Quatro anos depois, o artista regressou ao mediterrâneo pelo qual havia se apaixonado e mudou-se definitivamente para a Itália em 1957, onde passou a maior parte de sua vida, até falecer, em Roma, no ano de 2011.
No universo das artes plásticas, e mais especificamente no contexto geográfico estadunidense, ele participou de um cenário demarcado justamente pelo movimento do Expressionismo Abstrato. Embora, é claro, sua obra evolua e se transmute com o passar do tempo, será possível reconhecer alguns traços distintos no seu trabalho, como o uso da tinta de parede industrial como base para as telas, da tinta à óleo em manchas tempestuosas e coloridas, além de uma caligrafia volátil feita com grafite.
Será curioso perceber uma espécie de glória nominalista que parece afetar o trabalho do artista a quem foi dado o nome Cy: ciclones (em inglês, cyclones) e palavras cifradas (cyphers) serão a assinatura distinta do estilo do artista ao longo de sua vida.
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Escrevo agora a partir das lembranças que tenho de minha visita à exposição, suplementadas pelas impressões espontâneas que sobreviveram registradas em meu caderno de anotações.
A companhia de Mariana, que é pintora, foi preciosa, pois, além de emocionar-se comigo diante do trabalho de Cy e dividir a cumplicidade de presenciar um acontecimento artístico, me ajudou a desvendar alguns aspectos técnicos de suas telas.
Diante da minha experiência, agora geograficamente distante dos quadros de Twombly, penso se o processo da arte só está completo, afinal, enquanto reminiscência na memória de quem a vê.
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Os meandros da memória, os contornos de uma lembrança que se modificam com a passagem do tempo, são, para mim, o tema fundamental no trabalho de Twombly. Em suas telas, rasuras e palavras criptografadas aparecem discretamente e guiam o nosso olhar. São espirais, ou movimentos livres do punho, que formam fantasmas de letras cursivas e se sobrepõem umas às outras.
A primeira sala da exposição no Pompidou era dedicada ao início de sua obra. Ali, quadros como Criticism, Free Wheeler ou Academy apresentavam-se como uma floresta cerrada de letras maiúsculas. Esse conjunto de nuvens de grafite suscita o desejo de decifrar algo que, todavia, não possui um sentido; ou ainda, o desejo de articular algo que não é feito de palavras, escolher os contornos dos rabiscos e traduzir uma língua que ainda não existe no mundo real.
E apenas por estarmos eu e Mariana ali, ao vivo, é que fomos capazes de notar nessas telas uma atmosfera nublada, de tinta branca amarelada pelo tempo. Esta que é, provavelmente, alguma reação química de oxidação, faz com que as telas tenham adquirido, com a passagem dos anos, o aspecto de um sol que brilha atrás de um manto esbranquiçado de nuvens. Nesse sentido, uma materialidade bastante concreta, que diz respeito à marca do tempo, faz com que cores envelhecidas e pequenas rachaduras integram-se à obra como se fosse suposto estarem lá.
Twombly pinta sua tela com tinta de parede e escreve sobre ela com um lápis de grafite. O ato de escrever, embora inscreva pequenos apontamentos secretos na obra, às vezes acaba por arrancar a camada material do fundo, ou até mesmo furar o suporte por acidente. Uma tela, nesse sentido, acaba por possuir caminhos feitos de lacunas vazias: a pintura industrial, o gesso, o grafite, a cal e a tinta de parede trocam de lugar e formam um relevo de materiais, de rasuras e de furos que se sobrepõem em uma trilha escavada, composta de lembranças vagas e espaços em branco.
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Com a passagem dos anos, as telas de Twombly foram ganhando cada vez mais volume de tinta e de cor até que, no final de sua vida, seus ciclones tenham se transmutado em flores incandescentes que escorrem pela tela.
Bem no centro da curadoria escolhida pelo museu, a tela Untitled (New York City), de 1968, atraía o meu olhar. Nela, algumas espirais branca de giz avançam sobre um quadro negro. A imagem nos transporta para um contexto escolar, e nos faz imaginar um professor de fala embolada que registra suas anotações sobre a lousa. Ali, um aluno solitário e sonolento parece não apreender sua lição, rabiscando no seu caderno e esperando resignadamente que aquele confinamento acabe. Como quer que seja, a experiência do tédio registra dentro dele a impressão de um momento que vai perdurar ao longo de toda sua vida.
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A artista Tacita Dean, contaminada pelas imagens de Twombly, dedicou uma série de fotografias a ele. Os registros apontam detalhes de seu ateliê, onde respingos de tinta e papéis amassados pelos cantos, acidentais, revelam-se como uma manifestação processual subconsciente do resultado de sua obra.
Existe uma resignação twomblyana que se reflete no imaginário estético de Dean, mas ela a transforma numa linguagem completamente individual, mais cinematográfica que a dele. A obra The Montafon Letter (2017), por exemplo, consiste de nove lousas conectadas entre si, e possui aproximadamente 3,5 metros de altura por 7 de largura, exibindo uma majestosa montanha desenhada com giz sobre ardósia.
Em Dean, rasuras semelhantes às de Twombly despontam discretamente, no segundo plano de um trabalho monumental que, por conta de seu tamanho, evoca a força da natureza. Contrariamente, por ser feita de giz, possui um aspecto delicado, como se pudesse se desfazer com o vento.
Na parte direita inferior do quadro, uma avalanche se abate sobre uma pequena vila. A obra representa o episódio ocorrido no século XVII sobre o vale de Montafon, a sul de Vorarlberg, na Áustria. De acordo com a lenda, um padre que abençoava os mortos pelo desastre acabou sendo soterrado por um segundo deslizamento e, afinal, milagrosamente desenterrado por um terceiro.
Em The Montafon Letter, uma obra que representa uma montanha desenhada com giz sobre ardósia, a qualidade mineral revolve sobre si mesma em vários estágios de representação. Ali, Dean eterniza a ação de desenterrar enquanto ato de salvação. Talvez seja apenas isso que Twombly esteja a representar com sua escrita de uma língua indecifrável: a linguagem em si.
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Toda a obra de Twombly possui um traço infantil. No entanto, está trespassada pela marca da violência. Uma espécie de agressividade escatológica que, com gordas manchas de óleo, vermelhas, roxas e castanhas, é impressa pela mão do pintor no muro branco. Sem o artifício de um pincel ou qualquer outra ferramenta, Twombly usa as mãos para sujar a parede diante de si.
Nine Discourses on Commodus, por exemplo, é uma série de nove pinturas que faz referência ao império de Cômodo. O conjunto se assemelha a uma ferida aberta em processo de cicatrização. Nele, uma mancha branca ganha com o tempo o aspecto avermelhado, crescendo de tamanho até que comece a escorrer para, enfim, coagular em tons amarelados.
Já a série de pinturas Fifty Days at Iliam, que por sua vez alude às batalhas da Ilíada conforme descritas por Homero, parece condensar cenas de guerra em manchas de cor. Nessas pinturas, rabiscos fálicos dividem lugar com buracos negros e tempestades vermelhas. Ali, a força do conflito e da conquista, do ódio e da vingança, é observada à distância.
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Twombly, dedicado a uma história em processo de apagamento e sobrescrita, me ajuda a entender o território da história da arte como uma espécie de palimpsesto: um pergaminho no qual se escreve por cima das rasuras do que estava ali anteriormente, evitando que uma interpretação se sobreponha definitivamente às outras.
Mais do que isso, suscita o desejo de tradução como uma espécie de condição fundamental. Para alguém que escreve sobre arte, traduzir em linguagem verbal a força que emana de um objeto funciona como uma forma metafórica de tradução.
Nesse sentido, as ressalvas em relação à validade de um texto crítico costumam apontar para uma encruzilhada: quando se transpõe uma obra de arte para o discurso verbal, perde-se a potência daquilo que estava no original? Ou, ao invés, ganha-se ao articular suas idiossincrasias através de um discurso lógico?
Escolher uma resposta certamente deverá passar pela complexidade do pensamento acerca da tradução em si: traduzir é descanonizar, fragmentar, ou até mesmo trair a manifestação original, mas é, ao mesmo tempo, incutir nela o olhar da alteridade. Afinal, a obra de arte não está completa sem aquele que a vê.
Ver uma obra de Twombly suscita um desejo de deciframento. Embora algumas de suas obras pareçam se esforçar para não dizer nada, murmurando algo secretamente para si mesmas, é irredutível o sentimento de que algo emana de seu acontecimento enquanto obra de arte.
Saindo do Pompidou e olhando para os telhados que se acumulavam até o horizonte sob a névoa branca de inverno, a tensão resignada da violência das ruas de Paris parecia ainda sussurrar algo para mim.
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Paris utópica:
Na performance Real Snow White, a artista finlandesa Pilvi Takala caminha fantasiada de Branca de Neve pelo parque da Disney na cidade de Paris. Em poucos minutos, pessoas começam a se aglomerar à sua volta e, sem demora, seguranças do parque a abordam, pedindo que ela se retire, uma vez que não é a “Branca de Neve de verdade”.
A tensão que emerge revela a fragilidade da utopia da Disney. Com dificuldade, os seguranças explicam que apenas as crianças e os funcionários podem estar fantasiados, e que o seu traje não é permitido uma vez que ela pode fazer algo de errado dentro do estabelecimento. Nesse sentido, Real Snow White desnuda de maneira irônica a dinâmica de poder entre instituições e indivíduos. Ela explicita como uma utopia funciona apenas para aqueles que optam por obedecer suas regras implícitas.
De acordo com a artista, “o slogan da Disney ‘os sonhos tornam-se realidade’ refere-se obviamente apenas a sonhos produzidos exclusivamente pela Disney. Qualquer coisa, mesmo que ligeiramente fora do controle, desperta imediatamente o medo de que estes sonhos, possivelmente obscuros e perversos, possam tornar-se realidade”.
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Paris recalcada:
Ao observar a obra de Steve Mcqueen intitulada Barrage - uma série de fotografias dedicada a trapos amontoados sobre os bueiros de Paris -, Didi-Huberman* reconhece o sintoma de algo recalcado:
“Se Paris foi mesmo ‘a capital do século XIX’, como disse Walter Benjamin, foi-o igualmente de uma modernidade sem descanso, produtora dessas ‘estampilhas de tempo’, desses ‘olhares imemoriais,’ capazes de fazer surgir a antiguidade a partir da - ou na - mais insignificante serapilheira…”
Didi-Huberman se refere a um sintoma da pobreza e de uma violência incrustada nas subcamadas da cidade. Se hoje faz sentido olhar poeticamente para a sujeira deslocada para o esgoto, é porque ela viaja pelo tecido do tempo: essa mesma violência é constituinte da história da cidade.
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Quando Agamben** define o contemporâneo, o faz com uma cisão fundamental, dizendo que quem divide o tempo, ao tentar defini-lo como seu, “inscreve nele uma cesura e uma descontinuidade”. O filósofo então compara nosso entendimento de “século” a um animal monstruoso, com a costela quebrada, que, ao olhar para trás, desfigura o seu rosto por conta da dor. No fundo, parece ser o próprio desejo de definição em tempo real, e a subsequente dor desse deslocamento, o que define a pessoa contemporânea.
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O conflito de representações define a história da civilização. Na arte, ele possui uma dimensão simbólica. Na vida real, o choque acontece como uma pulsão reprimida, anacrônica, explodindo o tecido do cotidiano - como a tragédia de Paris acontecida em novembro de 2015.
Certa noite, após um cansativo dia de peregrinação pelo centro da cidade, dividimos um jantar no pequeno apartamento de nossa amiga que nos acolheu. Ali, falando sobre sua experiência na cidade, ela nos ensinou que, embora pareça não haver sentido para as coisas que nos acontecem, é de nossa responsabilidade articular um significado para aquilo que nos molda.
Nossa experiência de vida é o processo de legitimação por excelência. E é através nossa memória, que se molda conforme a passagem do tempo, que entendemos aquilo pelo que passamos. Espero que o tempo mitigue a dor da violência real que insiste em ressurgir e que reencontremos, semelhantes em nossas diferenças, a reconexão da civilização com a nossa humanidade.
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