Cauim.
Uma das primeiras coisas que fiz logo que cheguei ao Brasil no final de fevereiro, foi comprar alguma comida na quitanda da esquina do apartamento de São Paulo onde eu estava hospedado. A intenção era arejar um pouco a cabeça no dia seguinte de uma viagem de mais de dez horas de vôo, buscar inspiração e improvisar algum almoço. No entanto, durante a deambulação, fui acometido por um desejo impulsivo, que parece sem sentido para alguém que vive aqui, mas que veio com força depois de mais de quatro anos de vida em Portugal: tirei fotos da montanha de cachos de banana nanica disposta no setor de frutas, comprei uma pequena bandeja de cajus e um tijolo de rapadura.
Ao chegar em casa, cozinhei alguns sabugos de milho verde, que depois comi com sal, manteiga e pimenta do reino moída. Como aperitivo, preparei um “caju amigo” (ou uma caipirinha de caju), que é uma bebida que se faz amassando o fruto doce e suculento com um pilão, depois despejando um pouco de cachaça envelhecida - amarelada por conta da infusão da madeira do barril no líquido - e misturando tudo com um punhado de gelo.
Esse tipo de vontade espontânea pela comida revelou em mim um tipo de conexão com o Brasil, uma que há muito tempo eu não sentia em outros aspectos da cultura no país - ainda mais desde que a eleição de Bolsonaro afastou a identidade nacional cada vez mais da minha subjetividade individual.
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A Mão da Febre é uma palestra-performance na qual Vivian Caccuri divaga sobre a cor amarela no imaginário brasileiro, interpretada sob o signo da colonização. A artista divaga sobre o consumo da mandioca, do mel e do milho pelos nativos do continente americano, e sobre como tais alimentos, além de sua função nutritiva, estão também associados a cerimônias mágicas, como ritos de passagem, de fertilidade e assim por diante. Estes alimentos amarelos são também matéria prima de bebidas fermentadas, alcoólicas, cerimoniais. “Vinhos” ou “cervejas” produzidas a partir do mel, do milho, da mandioca ou da banana pelos nativos são a imagem de um conhecimento efervescente, que permite acesso aos segredos da natureza.
Com a chegada dos portugueses, e subsequentemente com o cultivo da cana de açúcar, a cor amarela passa a ser determinada pelos doces conventuais, feitos com gema de ovo. É também nas lavouras de cana-de-açúcar que prolifera-se o mosquito responsável pela disseminação da febre amarela - antes erradicada, mas recentemente ressuscitada no Brasil. O mosquito, largamente conhecido no país, é o mesmo que transmite os vírus da dengue, do zika e do chikungunya.
Assim, o processo de colonização é também o veículo de disseminação da doença e da infiltração da religião institucionalizada no Brasil. No entanto, mais do que sublinhar uma espécie de antagonismo entre as nações, A Mão da Febre deixa em evidência uma conexão eterna, uma dívida irreparável, perpetuada através dos séculos e cujo produto final resulta em algo muito mais complexo que a soma de suas etapas históricas.
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Aqui, o presidente, cuja campanha eleitoral valeu-se da cor amarela, promove um (provavelmente inédito) auto-genocídio, ou seja, uma campanha da morte que vai afetar mais gravemente aqueles que acreditam em suas palavras. O signo da destruição é a etapa final de um longo encadeamento lógico de seu governo, já marcado por tantos delírios nazi-fascistas.
Vim para o sítio onde moram os meus pais no início de março. Na fronteira do Mato Grosso do Sul, o isolamento já se estende por mais de um mês; no entanto, apenas agora os primeiros casos de coronavírus apareceram na região, cuja paisagem se define pela monocultura da cana-de-açúcar. Até então, os casos de dengue ainda competiam com a importância da pandemia.
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Na angústia dos dias incertos do isolamento, cozinhar tem se tornado uma das atividades mais disseminadas nas redes. De fato, o contato com a comida possui um caráter terapêutico, e, me parece, é mais por essa razão do que qualquer outra que o pão de fermentação natural tenha se tornado uma das tendências do isolamento social.
A feitura do pão é um processo simples. A receita precisa de dois ingredientes: água e farinha. Basta misturá-los, então esperar, revirar a massa algumas vezes para que ela tome o formato desejado e, enfim, assar. A opção pelo fermento natural (que chamam de massa azeda, sourdough, levain, fermento de Cristo, entre tantos outros nomes), que ocorre espontaneamente pela ação das bactérias e leveduras presentes no ar e das mãos da pessoa que cozinha, acontece justamente pela facilidade de se conseguir dois ingredientes tão primordiais.
Envolvido por essa tendência, resolvi eu também assar, do zero e pela primeira vez, um pão. Amassei uma bola de farinha com água e deixei-a, por alguns dias, fora da geladeira, para fermentar. Apesar de alguns sinais que indicavam o começo desse processo - um cheiro doce e algumas bolhinhas de gás presas na estrutura do glúten -, a mistura não atingiu a dimensão necessária para que se tornar de fato um fermento.
Assim, resolvi colocar alguns goles de garapa dentro de minha massa-mãe. No dia seguinte, o volume havia dobrado, e o fermento estava pronto para ser utilizado.
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O Cauim, bebida sagrada para os indígenas das Américas, é uma espécie de cerveja preparada com a mandioca. Para fazê-lo, é necessário mastigar o alimento e, depois, cuspi-lo num tacho para que fermente por alguns dias antes de ser consumido. O líquido alcoólico que resulta desse processo conduz muitos rituais nativos do Brasil.
Não será raro uma reação de repulsa daqueles que não estão acostumados com a ideia de consumir um alimento pré-mastigado. No entanto, basta olhar com um pouco mais de atenção para perceber costumes fora da curva dos padrões de higiene contemporâneos já incutidos em nossa cultura: o vinho é o resultado da uva pisada pelos pés descalços. As bactérias e leveduras presentes ali, nas cascas e entre os dedos, serão inoculadas para que o processo de “fervura” do mosto se inicie.
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Entre tantos outros tipos de cerimônia, o cauim figurava também na prática do canibalismo. De acordo com o livro Comidas Dos Nativos do Novo Mundo, algumas tribos devoravam os prisioneiros de um povo inimigo.
“Nos dias que antecediam a execução de prisioneiros uma grande festa era preparada (…) De acordo com o ritual, entre danças, consumo de cauim, fogueiras e gritos o prisioneiro era pintado, amarrado pela cintura com longos cipós e insultado pelos algozes. As outras pontas dos cipós eram seguradas pelos índios, permitindo certo movimento ao prisioneiro, que avançava sobre seus inimigos proferindo ofensas e contando quantos deles ele havia derrotado e comido”.
Quando os europeus chegaram à Amazônia, sublinha o mesmo autor, ficaram abismados com os rituais antropofágicos, “sem se lembrarem que no fim do período medieval o mesmo acontecia na Europa”.
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O Abraço da Serpente é um filme realizado pelo colombiano Ciro Guerra. Ele conta a história de Karamakate, um xamã que é o último sobrevivente de sua tribo. A trama é baseada nos diários de viagem reais dos pesquisadores Theodor Koch-Grunberg, etnógrafo alemão, e Richard Evans Schultes, botanista estadunidense.
O filme possui uma atmosfera envolvente e cria uma Amazônia imaginária, misteriosa, mágica, que parece manifestar a sombra do inconsciente em estado puro. A trama se inicia quando Theo, ajudado pelo seu companheiro de viagem Manduca, encontra Karamakate. O cientista, muito doente, pede ajuda ao xamã para encontrar a yakruna, uma planta alucinógena que é a sua última esperança de cura.
Em seguida, o filme salta para mais de trinta anos no futuro. Ali, encontramos Karamakate já muito mais velho, esquecido dos costumes de seu próprio povo. Quem busca sua ajuda agora é Evan, que alega querer completar a missão de Theo.
A conexão entre os dois personagens, dois homens brancos que voltam para atormentar Karamakate, sugere um retorno, um tempo que corre circularmente e que renova situações mal resolvidas. Será apenas através do segundo indivíduo que o xamã será capaz de curar as angústias do primeiro.
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Em uma passagem especialmente marcante do filme, Karamakate, Theo e Manduca atracam sua canoa em um acampamento católico, comandado por um missionário espanhol particularmente sádico. Ali, vivem apenas crianças “resgatadas”, proibidas de falar o seu idioma original.
Anos depois, os personagens voltam ao acampamento para encontrar todos adultos. A sociedade, que cresceu sob o preceito cristão fundamentalista, tornou-se especialmente fervorosa e violenta, agora, sob o comando de um falso messias brasileiro.
Em um ritual, ele pede que as pessoas comunguem, consumindo o sangue e o corpo de Cristo. Karamakate, então, prepara uma bebida feita de caapi para que todos brindem. O que se segue é um delírio coletivo: no êxtase provocado pela planta, os fiéis devoram o corpo de seu líder.
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Ao longo dos últimos anos o Brasil parece ter se dado conta do que significa ignorar seus traumas históricos. O jornalista Fernando de Barros e Silva escreveu um texto especialmente contundente sobre as consequências de uma nação que nunca assumiu responsavelmente as consequências de sua ditadura militar. Ao resgatar uma citação do escritor Nuno Ramos, ele escreve: “Por estar em toda parte, suspeito que esse tema [a violência] aproxime-se, entre nós, do impensável, e que traga em seu DNA, como esses vírus de mutações constantes e velozes, alguma coisa metamórfica que sempre se transfigura e escapa”.
O marco da situação política em que se encontra o país parece ter acontecido durante o voto favorável ao impeachment, quando o então deputado e hoje presidente exaltou um torturador. Diz o jornalista:
“Em poucos segundos, Bolsonaro estabeleceu a conexão histórica entre os dois golpes (1964-2016) – o primeiro, militar; o segundo, jurídico-parlamentar –, como se desenhasse uma moldura para homenagear no centro do quadro o “pavor de Dilma Rousseff”. Ao acrescentar esse aposto ao nome do torturador, o deputado de alguma maneira fez reviver a própria tortura, num exercício de sadismo de que pouca gente é capaz. De forma provavelmente inédita no Congresso Nacional desde o fim do regime militar, estavam sendo atiradas no lixo a democracia como experiência histórica e a democracia como ideia e referência fundamental da vida política”.
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Ao redor das mesas de jantar brasileiras, começa a se desenhar um luto de um trauma que ainda vai marcar o país. Nelas, acontecerá o exercício resiliente, laborioso, de perdoar aqueles próximos de nós que apoiaram o Messias da morte.
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Ao longo da história da arte, a comida insistentemente funcionou para metaforizar o prazer, sendo um veículo capaz de conectar entre as pessoas, provocar a sensação de preenchimento, e assim por diante.
É através da língua, no entanto, que o governo brasileiro regurgita incessamente seus absurdos. Já se passaram dois meses desde o início da crise pandêmica no país e, em muitos lares brasileiros, a mesa de jantar transmutou-se de um ambiente de cultura para um de tensão: a qualquer momento, alguém irá citar alguma tragédia nacional, desencadeando um ambiente desconfortável, intragável, do cotidiano. Hoje em dia, a simples menção ao nome do presidente parece capaz de causar asco.
Uma das consequências nefastas de um governo autofágico como esse é o sequestro da subjetividade. Parece não haver mais espaço para o devaneio, para o desejo, para a capacidade de sonhar, ou coisa que o valha. É preciso resistir à ideia de que todo momento de prazer se tornou uma irresponsabilidade diante do absurdo: a distração e o deleite talvez sejam escapes possíveis da criatividade e da imaginação em tempos perversos.
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Ao longo das últimas duas semanas, operei com uma energia baixa, que imagino ser comum nesse período em que nos encontramos. Foi apenas diante da ideia de cozinhar algo novo – na verdade, produzir um tipo de cerveja rústica, primitiva – que fui capaz de me animar um pouco e buscar alguma novidade dentro dos dias que se acumulam uns sobre os outros.
O método mais simples possível de fazer uma cerveja caseira, sem equipamentos especializados, consiste em deixar germinar alguns grãos de cereal – no meu caso, o trigo –, cozinhá-los, para, depois, deixar a infusão fermentar.
As modas culinárias da quarentena, como o café emulsificado chamado Dalgona – que resulta da mistura vigorosa de café solúvel com água e açúcar, transformando-se em espuma – até o pão de massa azeda, não são necessariamente estratégias de sobrevivência, mas uma oportunidade de vivenciar uma conexão com valores mais relacionados à saúde mental. Aqui, cozinhar configura, mais que uma possibilidade de experimentar, um exercício de resistência.
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Lembro-me de uma crítica publicada pelo jornal The Guardian relativa à 32ª Bienal de São Paulo, que aconteceu no ano de 2016. Naquela ocasião, a curadoria propôs o tema “Incerteza Viva” para a exposição, procurando refletir sobre o estado de ansiedade que se anunciava diante do agravamento da crise política. No texto, o repórter relata que, ao se deparar com obras que evocavam um retorno à natureza - esculturas feitas de cristais, barro e outras matérias primas em estado bruto - não gostou do que viu:
“Em muitas ocasiões, o programa [da Bienal] mergulha em esoterismos do tipo ‘vamos-curar-o-mundo’, ideologias hippies de volta à natureza e bobagens espiritualistas [...] Há algo imaturo, próximo ao primitivista nessa celebração da terra mágica [...] Em um momento de crise real, quando a linguagem política não tem espaço para fantasias, pensamento crítico e claro não seria o mais mais adequado?”
No entanto, o estado hoje caótico do país apenas evidencia uma relação desconfigurada com o planeta que sempre esteve lá.
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Vivendo no sítio desde o início do isolamento, é inevitável que se estabeleça uma nova percepção do cotidiano. Aqui, alguns acontecimentos ultrapassam a ordem do banal e rompem com a morosidade dos dias.
Certo dia, caminhando pelos arredores do terreno ao entardecer, nos deparamos com um tamanduá-bandeira morto na beira da estrada. O animal, de mais ou menos dois metros de comprimento, provavelmente atropelado por algum caminhão de cana durante a madrugada, acabou tornando-se parte da paisagem.
Em outra ocasião, durante uma faxina - essa que é a epítome da tarefa prosaica - um escorpião amarelo foi encontrado debaixo do sofá. A revelação, assustadora, elimina a dormência do passar do tempo, trazendo à tona a consciência do perigo.
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No texto O paradoxo do Fasmídeo, Georges Didi-Huberman fala sobre a experiência aterrorizante da aparição. Nele, o filósofo narra como o encontro com um bicho-pau no viveiro do Jardin des Plantes, inseto que vive entre escorpiões e outros bichos peçonhentos, reconfigura sua noção de meio-ambiente.
Daniel Steegmann Mangrané explorou essa relação na obra Uma Folha Translúcida no Lugar da Boca, na qual o artista criou um viveiro de bichos-folha. A estrutura transparente, de bordas onduladas, confunde o espectador duplamente: tanto na aparição dos bichos, invisíveis para um olhar que não está atento, como também na alteração do espaço, colocando o público “dentro” do viveiro que observa.
De acordo com Didi-Huberman, os fasmídeos são, em si, o cenário em que estão envolvidos. A aparição de algo que esteve sempre lá denota uma espécie de perigo. Ali, entende-se que “a floresta dentro da qual se caminha é também o animal que em breve irá devorá-lo”.
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Na obra O Peixe, o artista Jonathas de Andrade explora a relação do Brasil com as suas origens. Exibida durante a 32ª Bienal, trata-se de um falso-documentário que olha para um ritual mágico praticado pelos pescadores do rio São Francisco: estes, ao apanharem sua caça, abraçam os peixes até que morram em seus braços. Passível de ser entendido como primitivista pelo olhar anacrônico do homem branco, a relação estabelecida no filme evoca um tipo de contato que ainda persiste no entendimento dos povos nativos em relação ao ecossistema.
Dizia o programa da Bienal: “A arte se funda na imaginação, e apenas através da imaginação seremos capazes de vislumbrar outras narrativas para o nosso passado e novos caminhos para o futuro”.
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